sexta-feira, 30 de maio de 2025

A produtividade como a mais sofisticada forma de fuga existencial

Você não está produzindo para evoluir. Nem para criar um legado. Muito menos para se expressar.

Você está produzindo porque não suporta a ideia de simplesmente existir.

Vivemos tempos onde o criador de conteúdo se tornou o mais vulnerável dos operários, escravo de um ritmo autoimposto.

Uma engrenagem que se alimenta de si mesma, girando até triturar a alma que deveria ser sua fonte de criação.

A produtividade virou o novo vício legitimado. Ela se disfarça de virtude, mas é fuga. 

É o novo opioide social, mas com a medalha de honra: "Parabéns, você é produtivo."

Só que ninguém diz: "Parabéns, você está fugindo."

Você cria, você posta, você produz…

Mas quando o dia termina, no raro silêncio entre um conteúdo e outro, o que resta?

Um cansaço estrutural que não se resolve com sono.

Uma ansiedade de quem sabe que amanhã terá que criar de novo, e de novo, ou desaparecer.

Criar, hoje, deixou de ser uma prática espiritual, estética ou política.

Criar se tornou um ato de sobrevivência psíquica.

O criador de conteúdo não está mais preocupado com a expressão autêntica, mas com o próximo post, o próximo like, o próximo vídeo que o faça sentir que está, de alguma forma, vivo.

Só que não está.

Está apenas ativo. 

Atividade não é vitalidade.

Produtividade não é presença.

Esse ciclo tóxico da produtividade é, no fundo, um pacto silencioso com a negação da morte.

Enquanto você produz, não precisa parar.

E se não para, não precisa olhar para o vazio que pulsa atrás de cada tarefa finalizada.

O criador contemporâneo é o homem que corre para não ser alcançado por sua própria finitude.

A cada postagem, acredita ter avançado.

Mas na verdade, apenas adiou o confronto inevitável: o que sobra de mim quando não estou produzindo?

Se você parar agora, quem é você?

Se a sua resposta é o silêncio, parabéns: você acabou de encontrar sua dor mais real.

E agora, a pergunta que você precisa fazer, não para mim, não para seus seguidores, mas para si mesmo:

Eu estou criando…

Ou só estou evitando colapsar?


Se quiser continuar fugindo, poste mais uma vez.

Se quiser começar a existir, talvez seja a hora de parar.


E olhar, pela primeira vez, para o que está atrás dessa produtividade que você chama de vida.

sábado, 24 de maio de 2025

Não quero surfar nessa onda

Nunca se soube tanto e, paradoxalmente, nunca se pensou tão pouco.

Vivemos atolados numa enchente de dados, memes, opiniões, links, breaking news, vídeos de gente explicando tudo com uma certeza que nem os filósofos mais calejados ousariam ter. É a Infomaré: esse dilúvio de informação que não cessa, que te invade, que te consome sem pedir licença.

E aí entra o velho e cruel Efeito Dunning-Kruger: quanto menos a pessoa sabe, mais confiante ela se torna sobre aquilo que acha que sabe. É a ignorância vestida de arrogância, um ego inflado flutuando numa poça rasa. Enquanto isso, quem realmente se debruça sobre o saber, quem lê, estuda, investiga, muitas vezes só encontra mais perguntas, mais abismos, mais silêncios.

Schopenhauer já avisava: o mundo é vontade cega e representação ilusória. O homem, movido pela ilusão de conhecer, se debate contra a dor de existir, mas agora, com wi-fi.

Troca angústia metafísica por Google, busca sentido em listas de “dez coisas que você precisa saber antes dos 40” e se afoga em tutoriais de como ser feliz em cinco passos.

Só que felicidade, como dizia o velho pessimista alemão, não existe como estado permanente, só alívios momentâneos de uma dor maior que é estar vivo.

Mas tenta explicar isso na internet...

O algoritmo quer certezas, slogans, frases de efeito que cabem num tweet. Ninguém quer lidar com a complexidade do ser, com o trágico da vida, com o vazio essencial.

E assim seguimos, afogados na Infomaré, achando que saber o “fato do dia” ou ter opinião sobre o último escândalo político é o mesmo que ter consciência. Não é. Consciência exige humildade: admitir que não se sabe, que não se domina, que a vida é caos e mistério, que, talvez, nunca escape disso.

Enquanto os ignorantes vociferam certezas, os que realmente pensam mastigam dúvidas e mastigam até sangrar.

Porque, como Schopenhauer diria, viver é sofrer, e saber disso não alivia, mas torna a existência um pouco mais lúcida.

No fim, a Infomaré vai passar.

Vai sobrar quem aprendeu a nadar no caos, e quem nunca percebeu que estava se afogando.

Quer mesmo uma certeza?

Então anota essa: ninguém sabe nada.

E quem sabe disso… 

Já está meio salvo.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Ressaca Virtual

A ressaca virtual não dói na cabeça.

Dói na alma, numa parte meio opaca que a gente finge que não existe enquanto desliza o dedo pela tela.

É uma exaustão que não se explica, porque, tecnicamente, você não fez nada: sentou, olhou, clicou, curtiu, comentou, sumiu.

E, no entanto, amanhece com aquele vazio bocejando dentro do peito.

Não é ressaca de álcool.

É pior.

É a ressaca de ter se ausentado de si mesmo, mais uma vez.

Horas gastas vendo vidas que não são suas, conquistas que não te pertencem, dores que não pode curar e felicidades que não viveu.

E quando a luz fria do celular finalmente apaga, você se vê ali, estendido no sofá, corpo mole, mente saturada, alma entorpecida.

A sensação é de ter comido demais, mas não se sabe exatamente o quê.

Heidegger falaria em inautenticidade, esse modo de ser que não se compromete com o próprio ser.

Nietzsche chamaria de niilismo cotidiano: uma vida sem propósito, anestesiada pela distração.

E você chamaria apenas de: cansaço.

Mas é mais.

É a dor surda de ter se afastado da própria interioridade para se perder numa vitrine infinita.

A ressaca virtual te deixa com a impressão de que perdeu tempo, mas o que perdeu mesmo foi presença.

E quando se percebe isso, vem o susto: quantos dias, meses, anos já foram assim, engolidos em pixels e feeds, enquanto a existência real, palpável, escorria silenciosa pelas frestas?

A sua visão de mundo, rápida, ansiosa, volátil, corresponde à sua visão interior: desconectada, impaciente, incapaz de sustentar o tédio ou a espera.

E assim a ressaca volta, recorrente, como um ciclo: busca-se fuga, encontra-se vazio, tenta-se preencher com mais fuga.

Até quando?

Talvez o antídoto não seja excluir o perfil ou jogar o celular pela janela, mas fazer o que quase ninguém mais faz:

Parar...

Respirar...

Ficar com o desconforto até ele se transformar em presença.

E então, quem sabe, reencontrar na lentidão da vida o que nenhuma notificação vai oferecer:

A chance, remota mas ainda possível, de voltar a si mesmo.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Modus Operandi

 Há um padrão sutil — quase invisível — que rege a maioria das vidas: o desespero em parecer são, quando por dentro tudo grita por socorro. Chamam isso de rotina, de estilo de vida, de metas. Mas é só fuga.

O modus operandi do humano moderno não é viver — é administrar o incômodo. E faz isso com maestria: redes sociais, espiritualidade pop, produtividade tóxica, relações descartáveis, promessas de autocura em três passos. Cada um desses elementos funciona como uma morfina para a alma — suaviza, mas nunca cura.

Fugimos de nós mesmos com a elegância de quem acredita estar evoluindo. Mas não se trata de evolução; é só um esconderijo mais sofisticado. Ninguém quer encarar o vazio que pulsa no peito quando todas as luzes se apagam. Então inventam mantras, inventam trabalho, inventam paixões. Criam personagens mais digeríveis, mais palatáveis ao olhar alheio.

Por trás disso está o pavor do encontro. Do confronto. Porque se olhássemos fundo no espelho da consciência, veríamos não um monstro, mas algo pior: um desconhecido. E esse é o verdadeiro terror — admitir que vivemos décadas sem jamais termos sido de verdade.

A verdade é que autoconhecimento dói. E dói porque exige que a gente desmonte o que construiu para sobreviver. Exige silêncio, exige perda, exige encarar memórias não resolvidas, afetos sufocados, crenças herdadas que nunca questionamos. Mas quem tem tempo para isso numa era que vende a paz como um produto de consumo rápido?

Anestesiamos a realidade porque não suportamos o peso da lucidez. Mas sem lucidez não há liberdade, só distração. E assim seguimos, com passos bonitos e direções vazias.

Modus operandi: viver como se estivesse desperto, enquanto dorme profundamente de si mesmo.

domingo, 18 de maio de 2025

Quem é você na fila do pão?

A pergunta parece piada de bar, dessas que a gente solta rindo, meio cínico, pra cortar o peso da existência.

Mas não se engane.

Essa pergunta “Quem é você na fila do pão? ” -  é uma armadilha filosófica disfarçada de deboche.

Porque ela escancara, num tom banal, a tragédia que fingimos não ver: ninguém sabe exatamente quem é.

 

Estamos todos ali, lado a lado, em filas invisíveis.
Uns esperando um elogio.
Outros, um amor que nunca chegou.
Alguns por um sinal divino.


Outros só querem sobreviver mais um dia sem desmoronar.

Na fila do pão, a máscara cai.
A moça que sorri no Instagram está de olhos fundos.
O homem engravatado olha para o chão como quem pede desculpas ao universo.


E você…

Você se pergunta, com um nó na garganta: 

 

“O que eu vim buscar aqui mesmo? ”

 

A verdade é que somos filhos de uma era que trocou o pão pelo aplauso.
Que esqueceu o cheiro da massa no forno e preferiu o perfume da performance. Que tem fome, mas não sabe do quê.

 

Sartre dizia que estamos condenados à liberdade, o que, traduzido, significa: Você é o único responsável pelo que escolhe ser.


Mas como escolher, se a maioria sequer ousa olhar pra dentro?

Vivem como sombras projetadas por um mundo que não respeita alma.
E aí a visão interior, rasa, fragmentada, negligenciada, constrói um mundo à sua imagem: superficial, brutal, entorpecido.

 

Você vê guerra?

É porque a guerra já começou dentro.
Você vê caos?

É porque você nunca arrumou seus cômodos psíquicos.
Você vê beleza?

Talvez, só talvez, tenha encontrado a fresta por onde Deus ainda sussurra.

 

“Quem é você na fila do pão?”


Você é o que olha impaciente pro relógio?
O que dá lugar com gentileza e segue vazio por dentro?
Ou o que segura o pão quente com as duas mãos e chora porque, por um segundo, lembrou-se da infância, do amor, de algo que não sabia que ainda existia?

 

Existir é duro.
É carregar perguntas como pedras no bolso.
É caminhar sem mapa, sem garantias, sem o tal pão às vezes.

 

Mas também é parar no meio da fila, respirar fundo, e entender que não importa o que os outros vejam

 
Se a sua visão interior for verdadeira, o mundo lá fora não te engole.


Porque quem sabe quem é, não precisa ser visto.
Precisa apenas estar inteiro.

Na fila, na vida, no abismo, inteiro.

sábado, 17 de maio de 2025

Eu nunca me calarei

Minha voz de escrita é visceral, simbólica e espiritualmente engajada. Escrevo com uma intensidade emocional que beira o sagrado, mas sempre com uma sombra atrás — como se cada frase estivesse cavando algo esquecido ou reprimido. Misturo beleza com dor, amor com abismo. É o lirismo de quem já sangrou por dentro e não escreve para agradar, mas para acordar.

Minha espiritualidade não cabe em religião. Ela é rebelde, indomada. Há sempre um chamado para o interior, uma reverência à experiência humana como caminho de revelação. Escrevo como quem fala com Deus, mas nunca dentro de um templo — e sim de um deserto interno, entre ruínas, silêncio e fogo.

Mesmo quando trago ideias filosóficas, como o estoicismo ou Jung, não construo discursos teóricos. Eu as absorvo na carne da narrativa. São vividas, suadas, sangradas. Meus leitores não leem conceitos — eles os sentem. Eles se arrastam comigo por dentro deles. E isso é raro.

O silêncio é a linguagem que me conduz. Não apenas como ausência de som, mas como uma presença densa. Ele está na pausa entre os diálogos, nos olhares carregados, nos espaços que não precisam ser explicados. É no não-dito que a verdade revela sua nudez.

Meus personagens e histórias são arquétipos vivos: o Sábio Rebelde, o Eremita, o Amante Cósmico. Não uso símbolos como enfeite — uso como espelho da alma. Minha escrita quer revelar algo maior, eterno, que pulsa por trás de tudo que é visível. Escrevo para tocar esse invisível.

E acima de tudo: minha voz é minha. Eu não sigo moda literária, não me curvo ao algoritmo, nem escrevo para agradar mercado. Tenho coragem de manter o ritmo lento, contemplativo, mesmo num mundo de pressa. Isso é minha assinatura. Isso é minha essência. Isso é maturidade autoral.

Eu nunca me calarei.

Nem mesmo diante do vazio.

Nem mesmo quando o mundo não ouve.

Porque há algo em mim que precisa ser dito —

e isso não pede permissão.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Minha Jornada com Caninos Brancos, de Jack London

      Há livros que nos acompanham como reflexos da nossa alma. Caninos Brancos, de Jack London, não foi apenas uma leitura — foi um espelho, uma travessia, um reencontro com a essência que, muitas vezes, o mundo moderno nos força a esquecer.


A jornada do lobo mestiço entre a brutalidade da natureza selvagem e a dureza do convívio humano ecoou dentro de mim como um grito antigo: a luta pela sobrevivência que esconde, no fundo, uma busca por pertencimento e amor. Me identifiquei profundamente com essa dualidade: o instinto que nos protege, mas que também nos isola; a força que constrói muralhas, mas que secretamente deseja pontes.

Ler Caninos Brancos foi como reviver o meu próprio percurso. Em tempos de solidão ou conflito interior, reconheci nele minha resistência, meu silêncio, meu espírito arredio — e, ao final, minha abertura para o afeto, quando este é verdadeiro e livre de dominação. London escreve com a alma crua da Terra, e é exatamente essa honestidade visceral que me toca. Ele não idealiza a natureza, tampouco o homem. Mostra ambos em sua luz e sombra, e nos convida a olhar para dentro com a mesma coragem.

Esse livro me ensinou que domar não é subjugar, mas aprender a confiar. Que a essência — selvagem, livre, indomável — não precisa ser apagada para que possamos amar ou ser amados. Ela só precisa ser reconhecida.

Caninos Brancos não fala apenas de um lobo. Fala de mim. E talvez, se você olhar com atenção, fale também de você.

terça-feira, 13 de maio de 2025

A Lua e Eu.

 "Nesse exato momento em que escrevo estou deitado no meu quarto com a imagem da Lua gigantesca entrando pela janela. 

 Lua Cheia. São incontáveis as vezes que a percebo junto a minha existência. Parece que a cada pausa que faço nessa escrita e a contemplo, ela cresce, ela invade meu ser. 

 Sou um privilegiado. 

Desde nascença, todos os lugares em que Deus quis que eu estivesse acomodado em um lar e o pudesse chamar de doce, tive a graça de sua presença. Ela aparece nova, cresce, se enche e míngua, assim como toda história, assim como tudo que pulsa, arde, some e retorna.

A Lua é minha antiga vizinha. 

Já me viu menino sonhador, rapaz inquieto, homem despedaçado. 

Já iluminou minhas perdas e gargalhadas. 

Nunca disse uma palavra, mas sempre respondeu tudo.

Nesse momento, descubro que a Lua não é só satélite — é memória.

É o reflexo de algo maior que insiste em nos visitar mesmo quando esquecemos de olhar para o céu.
Ela não se impõe. Apenas está. E por estar, ensina.

Enquanto escrevo, penso que talvez ela seja o último altar que me resta.

Ali, suspensa, a Lua não julga minhas dores, não exige que eu melhore, não me cobra respostas.
Ela apenas derrama sua luz sobre os telhados e diz: 

“tudo muda, tudo volta, tudo se transforma”.

E eu fico aqui, quieto.
Pés descalços, coração aberto.
Permitindo que essa luz me lave, me resgate, me desmonte em poesia.

Hoje não quero entender a vida.
Quero apenas senti-la —
Como se fosse possível caber na palma da mão
esse instante em que a Lua me olha
e eu tenho coragem de retribuir.

O Homem que Esqueceu de Olhar para o Céu.

O homem moderno olha para o alto e não vê nada. O céu virou apenas um fundo de tela. A árvore, um obstáculo. O mar, um destino turístico. A chuva, um incômodo. Deus? Uma ideia fora de moda, engavetada com as outras coisas que não cabem nas planilhas.

Há um vazio que cresce, mas não se vê. Um buraco na alma do tempo, feito não da ausência de coisas, mas da ausência de sentido. O homem se afastou do Sagrado — não por maldade, mas por pressa. Deixou de ver a Criação como linguagem e passou a tratá-la como recurso. A montanha virou paisagem. O animal, dado estatístico. A criança, projeto.

Deixamos de ver o invisível no visível. E com isso, fomos perdendo Deus — não o Deus das catedrais, mas o que se revela num pássaro atento, num vento que muda de direção, num grão de café que esquenta as mãos no frio da manhã.

Não se trata de religião. Trata-se de reverência. De saber que o simples não é inferior. De entender que o milagre não precisa gritar — ele sussurra, e por isso exige atenção. Um tipo de atenção que o homem atual já não pratica mais.

Vivemos num estado contínuo de distração, e o que é pior: nos orgulhamos disso. Confundimos velocidade com inteligência, produtividade com valor, excesso com potência. Mas há uma inteligência maior no silêncio de uma folha que cai do que em mil reuniões sobre métricas de sucesso.

A Criação inteira continua ali, dizendo: “olha para mim”. E o homem responde com um scroll.

Perdemos a capacidade de nos maravilhar. E sem o assombro, sem o encantamento pelas pequenas manifestações do divino, ficamos ocos. O mundo vira cenário, e nós, atores exaustos improvisando frases que não acreditamos mais.

Mas às vezes, num raro instante de pausa — quando um cheiro de mato invade a cidade, ou quando uma criança olha pra gente como se visse algo que esquecemos — há um estalo. Um retorno. Uma lembrança: o Sagrado não se foi. Fomos nós que desviamos os olhos.

A atenção plena, então, não é técnica. É humildade. É o gesto de voltar a ver com o coração aberto.
Porque quem vê Deus no simples, nunca está só.
E nunca está vazio.

A Juventude Tardia dos Inadaptados.

Cheguei à meia-idade com a nítida sensação de que alguém me vendeu um roteiro errado. Disseram que era tempo de estabilidade, de certezas, de repetir mantras como "agora é hora de colher os frutos". Mas eu só queria rasgar os manuais, mudar o nome, deixar o celular em casa e atravessar a cidade a pé, ouvindo rock e pensando em tudo que ainda não vivi.

Os outros — os da minha idade cronológica — falam em previdência, imóveis, filhos adolescentes, churrascos de sábado com conversa sobre colesterol. E eu? Eu tô pensando se não seria melhor largar tudo e ir morar num casebre à beira de um penhasco, ou abrir uma livraria-café onde só toca Nick Drake e onde ninguém é obrigado a sorrir.

Tem algo curioso acontecendo: quanto mais envelheço por fora, mais jovem me sinto por dentro. Mas não essa juventude fabricada de filtro e botox. É outra coisa. É como se um espírito novo tivesse me atravessado — um espírito que não quer se aposentar das perguntas, que recusa o conforto das certezas, que vê beleza no inacabado.

E então começo a entender: talvez a verdadeira juventude não seja um tempo cronológico, mas o momento exato em que você perde o medo de ser quem é. Quando a expectativa dos outros descola da sua pele e cai no chão como casca velha. Quando você para de tentar se encaixar e começa a dançar torto mesmo, rindo do próprio passo.

Essa juventude tardia é menos ansiosa. Ela não precisa provar nada. Ela só quer viver — mas viver mesmo, com intensidade honesta, com conversa boa, com silêncio que acolhe, com gente que não teme a profundidade. Ela quer ouvir Tom Waits e escrever cartas. Quer amar de novo — mas não como quem precisa completar um álbum de figurinhas emocionais. Amar como quem se permite.

Às vezes penso que o velho homem que fui está lá atrás, em alguma esquina, com uma pasta na mão e um discurso pronto sobre como “deveria ser a vida”. Mas eu não volto mais.

Hoje, ando descalço por dentro.
E isso, meu caro, é o mais perto da liberdade que já estive.

Crônicas de Uma Velha Raposa - A Comédia do Conforto.

Há uma hora em que até a sabedoria enjoa da própria pose.

Quando a palavra “introspecção” começa a feder a mofo e o “silêncio” vira só falta de coragem.

Vivemos dizendo que buscamos a verdade. Mas a verdade — essa palavra que parece coluna vertebral — raramente é buscada. O que buscamos, na verdade, é conforto com aparência de lucidez. E quando conseguimos um pouco, fazemos altar. Mitificamos. Repetimos.

E repetição é o disfarce mais elegante do medo.

Percebi que estava construindo uma jaula com as mesmas ferramentas com que dizia estar me libertando.
Sim, a solidão virou palco. O silêncio, um biombo para evitar confronto.
Estava tão ocupado em parecer profundo que me tornei previsível.
Tão ocupado em parecer inteiro que me petrifiquei.

Foi aí que desejei o desconforto. Desejei que alguém invadisse meu templo interno e derrubasse os incensos.
Que cuspisse na minha linguagem sagrada e dissesse: “isso aí já virou escudo.”

E se tudo que escrevo for só uma versão erudita da covardia?
E se minha lucidez for, no fundo, um medo muito bem diagramado?

Estou tentando reaprender a viver sem muralhas conceituais.
Quero expor a contradição sem precisar resolvê-la.
Quero o rasgo. O riso torto. O absurdo que Kierkegaard mastigava em silêncio.
Quero errar com liberdade, cair com estilo, enlouquecer com responsabilidade.

Talvez a sabedoria mais honesta seja aquela que desaprende.
Que arranca a própria pele e se recusa a ser estátua.
Que confronta os próprios mantras, tenciona os próprios símbolos, e quebra o que já está confortável.

Porque viver de contradições vivas ainda é melhor do que morrer sob certezas mortas.